sábado, 6 de dezembro de 2008

Partimos para Angola há 46 anos


Fez ontem, 46 anos que partimos no paquete UIGE. Estivemos, hoje, a comemorar, essa data, no restaurante do Idalino (que foi emérito cozinheiro do nossa Batalhão) em V.N. de Gaia.

Presente, dominantemente pessoal do Norte.

Informei os meus amigos de Batalhão de que tinha iniciado a contagem das histórias, por mim vividas, junto do Batalhão, aqui, neste blog, mas que das mesmas não tinha recebido qualquer retroinformação, o que me levou a estar tanto tempo sem acrescentar algo (desde Junho que não escrevo). 

Recebi apoio de um número considerável deles, incentivando-me a continuar, o que me levou, hoje mesmo, a reiniciar esta escrita. 

Prometo que as histórias que acrescentarei, ajudem a valorizar um grupo de jovens que numa determinada altura da sua vida, foram obrigados a embarcar para Angola e que as suas atitudes e acções deverão ser devidamente conhecidas e consideradas. 

Prometeram-me, também, que não deixariam de colocar os seus comentários e anotações sobre o que considerarem que poderá a melhor esclarecer o então vivido.

domingo, 8 de junho de 2008

A central Vinte e Oito de Maio ou Central do Quinguengo?

Nos dois primeiros dias de Nambuangongo, em que andamos com os militares do Batalhão de Caçadores 137 a "visitar" as duas picadas em direcção a Zala e ao Quixico, nesta, foi-nos mostrado o acesso à central do Vinte e Oito de Maio, com a informação: "Ali, nunca alguém conseguiu chegar. Está tudo fortificado. Já apanhámos muita tareia".


Passados estes primeiros dias e no decorrer de conversas com os nossos superiores, ficamos a saber que o grande objectivo era a conquista da Central do Quinquengo, cujo local era o que me tinha sido referido pelo camarada do 137. Daí, e até hoje, para mim, uma e outra são a mesma coisa. Peço aos leitores, que por ali andaram, quer na mata quer nos mapas (pessoal das operações) que deslindem esta percepção.


O MATA ALFERES
Ali, naquele local, estavam os grandes senhores da guerra do outro lado. Era com estes que nos teríamos de encontrar. Quando chegamos a Nambuangongo falaram-nos no mata alferes. Um atirador especial que tinha feito o serviço militar no nosso exército, com o nome de António Fernandes. Tinham acabado de morrer 2 alferes com um tiro único na cabeça e segundo, se dizia, mortos por este atirador. O Ruas, e o Retorta (este filho de um conhecido dirigente do Benfica). Também tinha morrido o Szabo, filho de um treinador do Sporting, e este, era um dos mortos que estavam meio escondidos, num edifício feito morgue, quando passamos em Quicabo, a caminho de Nambuangongo, a 20 de Dezembro de 1962 e assistimos à guerra com aviação e artilharia sobre os morros que circundavam este quartel das nossas tropas. Em Fevereiro, ali ao lado no Mucondo, mais um tiro certeiro do António Fernandes, num alferes de cavalaria, o Ferrão.

Quando embarcamos em Lisboa, falava-se que já tinham morrido 15 alferes em combate. Três eram meus amigos. O Mota da Costa, meu colega de liceu que foi para a Academia Militar e era paraquedista, o Côncio da Fonseca, um dos 42 cadetes do nosso COM de Santarém, e o Francisco Keating, um médico daqui de Coimbra de quem me tinha despedido na estação de Coimbra - B.

Fácil será de perceber, como é que andávamos metidos naquela guerra. Um dos ataques, ainda não tínhamos um mês de Nambuangongo, a um grupo do nosso batalhão quando a caminho do Muxaluando, e que ia receber formação de comandos na região do Úcua, teve vários feridos e um morto com um tiro na testa, o Dores. E quem é que diziam que tinha sido o atirador? O António Fernandes.

Era este o panorama que se nos colocava. Os nossos superiores, como bons militares que eram, pretendiam acabar com a guerra o mais depressa possível. Eles e nós pensávamos que aquela guerra não iria demorar mais de um ano ou dois. Para isso, sabiam que o ponto forte estava ali naquelas matas, com um chefe, que se a memória não me atraiçoa, era o Panzo da Glória e com um grande atirador, o tal António Fernandes.

OS DEMBOS - A PACIFICAÇÃO DOS DEMBOS - O GEN. JOÃO DE ALMEIDA
Naquela altura ainda não tínhamos ouvido falar do MPLA ou FNLA. Só a UPA (União das Populações de Angola) centrada numa base do outro lado da fronteira, no Congo ex-Belga, a base do Kinkuzu, onde certamente tinham recebido treino os militares que do outro lado nos iriam dar luta. Sabíamos que o grande senhor da UPA, era o Holden Roberto.

Sabíamos, também, que estavamos no centro da região dos Dembos. Na zona montanhosa e de densas florestas. Entre os rios Loge, Dande e Zenza (ou Bengo). Conhecíamos a história da Pacificação dos Dembos pelo General João de Almeida o "Herói dos Dembos". Mas eu sabia que os Dembos, eles próprios, nunca se sentiram pacificados.

Um resumo da história, ajuda a perceber com que povo iríamos lutar.
Desde os primórdios da nossa entrada em Angola que os Reis do Congo, convertidos à fé cristã, prestavam vassalagem à corte portuguesa com alguma rebeldia de permeio. Por seu lado, os Dembos eram fieis ao seu rei, o do Congo, mas nunca à coroa portuguesa. No decorrer da nossa presença em Angola, mesmo com o rei do Congo a interceder para serem submissos, estes nunca atenderam a estes pedidos.

Esta atitude, obrigava o exército português a lutar sistematicamente, ao longo dos anos, tentando atrair para a nossa coroa a vassalagem desta população dum local tão perto de Luanda (100 quilómetros).

Datam de 1615 as primeiras campanhas contra os vários chefes dos Dembos que se revoltavam e não permitiam a passagem, fosse de quem fosse. Os nossos comerciantes não podiam entrar naquela zona para vender ou trocar os seus produtos. Até aos indígenas de outras regiões era cobrado o tributo de passagem e, caso contrário, ficavam com as mercadorias, quando não eram também mortos.

Guerras sucessivas, sob o comando de ilustres militares portugueses, e com algumas (poucas) vitórias sobre este gentio, levaram João de Almeida, na altura capitão, por alturas de 1907, acompanhado do tenente Melo Vieira, a fazer a pé, o trajecto até ao Encoje.
Revendo o trajecto então realizado, que, sem dúvida, é de louvar, verifico que foram sempre a contornar a zona a sul de Nambuangongo, a tal que nos tinha calhado para intervir. Não entraram propriamente no que era, para nós, o coração dos Dembos.

Chegados estes dois militares a Luanda e depois de relatarem o que verificaram, voltaram novamente para a região, agora com mais de 1000 homens, peças de artilharia, metralhadoras e outro material. Partiram com pompa e circunstância pois tiveram a presença de Sua Alteza Real o Príncipe D. Luíz. Só que toda a sua intervenção foi na zona de Quibaxe, Zenza do Itombe, Quindangue e Caculo Cahenda, onde foi construído um forte com o nome de João de Almeida.
Portanto, muito a sul da região de Nambuangongo (distante cerca de 100 quilómetros). Depois de várias batalhas, de terem sofrido 10 mortos e 30 feridos, e depois dos sofrimentos resultantes do clima, da guerra, das longas caminhadas, o exército português marcou "um dos mais brilhantes episódios da nossa história colonial".

Sei que na mesma altura, outras colunas procuravam pacificar o lado esquerdo da zona dos Dembos, pelo lado do Ambriz. Existem referências de colunas comandadas pelo Tenente Bessa Monteiro, que ali perdeu a vida em combate e que deu o nome a uma povoação, por onde passaram vários batalhões ( o Batalhão de Cavalaria 350 do Coronel Spínola). Esta povoação fica a norte de uma outra mata célebre, a Mata Sanga, considerada intransponível (nós passámo-la e disso daremos relato numa outra história), onde encontrei, quando por lá passei, perto da Quibala, na entrada sul desta mata, um forte de nome João de Almeida.

Manuel de Resende na NOTA FINAL dos Cadernos Coloniais "Ocupação dos Dembos 1615-1913", que consultei e que pode ser consultada em:
http://memoria-africa.ua.pt/MemoriaDigital/CadernosColoniais/CadernosColoniais-N61/cadernoscoloniais-n61-018.jpg, terminava a sua obra da seguinte forma:

HOUVE MESMO "PACIFICAÇÃO DOS DEMBOS"? E HOJE, OS DEMBOS DO "28 DE MAIO" ESTARÃO PACIFICADOS, EM RELAÇÃO À ADMINISTRAÇÃO DO PAÍS?
"As operações nos Dembos não ficaram pelas de 1913. Anos depois, nova coluna invadiu a região e, de então para cá, se pode considerar completa a sua vassalagem, não sem que tenha corrido um caudal de sangue. Necessário? Não necessário? A História o dirá. Por enquanto é cedo demais para fazê-la. As ossadas dos que tombaram, andam por lá, ainda, à flor da terra, e o tempo não apagou, ainda, os vestígios e os trágicos efeitos da luta."

Foi, sem dúvida, o então capitão João de Almeida, que chega a General, que reconhecidamente realizou um grande feito da nossa história colonial. No entanto, o que nós, quando chegámos aos Dembos sabíamos, era que o gentio da região, depois desta referida pacificação, nunca se sentiram submetidos aos portugueses. Uma das histórias que nos contaram, referia que uma vez por ano os residentes das povoações no interior da mata, mudavam-se de armas e bagagens para uma segunda povoação junto da picada, onde esperava o chefe de posto (a autoridade portuguesa municipal), pagavam o "imposto de palhota" (história para ser mais bem contada) e voltavam para o interior. Este interior, nunca nenhum branco visitou.

Outra história ligada à vontade de entrar no coração da mata referia que, uma das vezes, em que a autoridade portuguesa se aventurou além dos limites permitidos, foi recebida pelo soba sentado em cima de um barril, informando este de que ali, por baixo dele estava pólvora, mas lá dentro havia mais, de modo que aconselhava a não avançar. Da veracidade desta história, não consegui encontrar referências, mas muito provavelmente era verdade.

Aquele interior, a norte de Nambuangongo, à direita de Zala, a norte do Quixico, à esquerda de Quipedro e a sul do Rio Loge, nunca ninguém entrou desde o início da guerra colonial em Março de 1961. Soube, já depois de ter vindo, que a nossa tropa chegou a lá ter entrado, mas só depois de a artilharia e a aviação terem bombardeado a posição. Encontraram a central do "vinte e oito de Maio" santuário escondido, não visível pela aviação, fortificado, com postos de vigia em cimento armado, subterrâneos, etc.. Segundo o relato do fuzileiro Mário Manso em http://fuzileiros.tk/index.php?menu=4&sec1=2 , esta central foi alcançada pelo Destacamento nº 6. Transcreve-se parte do relato do referido fuzileiro.

"Sendo um olhar individual de um ex-combatente que aos 18 anos já tinha levado o primeiro, dos muitos tiros que uma emboscada de guerrilheiros ofereceu como boas vindas, ao destacamento nº 6 de Fuzileiros Especiais, que de forma pouco gentil, resolveu entrar naquele que era um respeitoso santuário, dos guerrilheiros daquela vasta zona dos Dembos, sem ter tempo de se benzer. Eu não era o padre, mas era o primeiro daquela enorme procissão, que de arma na mão, com ou sem razão, estava a cumprir ordens da Nação.
Já naquele tempo havia condomínios fechados. Aquela mata vinte e oito de Maio situava-se no “Concelho de Nambuangongo e Freguesia da casa de zinco sem nome de rua ou código postal” coração da guerrilha onde quem tentasse entrar, levava chumbo pela certa. Das muitas tentativas de assalto, levadas a efeito por outras forças até àquele momento, tinham sido frustradas, a segurança tinha funcionado, e os assaltantes tinham sido sempre postos em debandada, e então, só com a nossa rapaziada o portão foi forçado, e o assalto consumado. As forças invasoras, tiveram dois feridos e um morto. As forças de segurança das instalações, não conseguiram impedir os assaltantes de destruir o que puderam, desde “armazéns” de viveres, habitações, escolas, enfim, toda aquela qualidade de vida que existia naquela mata paradisíaca, em que o sol não entrava quando cria, que as suas gentes protegia, servindo de maternidade para a criança que nascia, e que lhe servia de berço quando dormia. Mas a bem da justiça social, tinha que se alterar tudo que estava mal, e ponto final."

Era este interior que queriam que nós conquistássemos. E julgo que os nossos superiores, também sabiam, que aquele local, ou se quisermos, aquelas gentes, não eram alvo fácil a abater. E digo isto, porque um dos filhos do General João de Almeida, era na altura oficial de cavalaria, de quem certamente os oficiais superiores do nosso Batalhão teriam ouvido mais do que eu ouvi.

A PRIMEIRA TENTATIVA PARA ENTRAR NA MATA
Chegámos a Nambuangongo e duma forma intensa e quase diária, saíamos para estudar a melhor forma de entrar no 28 de Maio. Pequenas emboscadas, por nós montadas, quer do lado de Zala quer do lado de Quixico, tinham por objectivo ver os movimentos e tentar fazer prisioneiros.

Socorro-me do trabalho do Mário Moreira Lima "399 Cavaleiros de Cavalaria - Memórias de um Batalhão" edição do autor, Julho de 2006, que refere em "Os primeiros mortos em combate" p.83, a data de 19 de Janeiro de 1963 como a da primeira morte no nosso Batalhão. Ora, esta morte, dá-se quando o pessoal da Companhia de Cavalaria 395 regressa ao Quixico, depois da primeira tentativa para ir ao "28 de Maio", em conjunto com a minha companhia a 394.

Assim, a nossa tentativa de entrar no "28 de Maio", deverá ter-se dado a 15 de Janeiro de 1963. Tínhamos vinte e poucos dias de Nambuangongo. Havia uma ânsia para destruir, o mais cedo possível, o santuário dos Dembos. Da nossa parte, os vários alferes, que apesar da pouca prática, e que sabíamos que demorava muito tempo a percorrer a pé, de noite, os trilhos da montanha e as linhas de água, algumas de corrente forte, procuramos informar de que era muito cedo para esta intervenção. Também sabíamos que teríamos de chegar antes das 4 horas da manhã. Hora a que se levantava o pessoal para trabalhar nas lavras. Tínhamos um guia que não nos dava garantias de conhecer bem o caminho. Não era da região, era um bailundo, portanto do sul que tinha fugido para o nosso lado. Também sabíamos e disso já dei referência, que os camaradas do batalhão que rendemos e que connosco andaram durante dois dias a conhecer os locais principais, nos disseram, que já tinham tentado lá ir várias vezes e que tinham sofrido sempre ataques e tiveram que voltar para trás. Que os acessos eram todos a subir e que tinham vigias bem colocados a grande distância do quartel. Não tínhamos um mapa do que era o local. Que acessos? Que desníveis? Como estava disposto o quartel? Como se movimentavam? Quais as zonas mais vulneráveis? Nem um modelo em caixa de areia ou, mesmo, desenhado no solo, nos foi mostrado. Pois, nem eles sabiam algo que pudessem desenhar.

Foi com estas permissas que 3 grupos da nossa companhia a 394 e 3 grupos da 395, num total de mais de 150 homems, partiram a 15 de Janeiro. Do nosso lado, saímos em viaturas, ao entardecer, com a indicação de que as mesmas à entrada da picada para o "28 de Maio", continuariam a sua marcha enquanto saltávamos em andamento para que, desta maneira, o inimigo não soubesse do início da nossa marcha a pé.

Depois de saltar das viaturas em andamento e durante algumas horas, caminhámos, os 3 grupos (Aragão, Múrias e eu) comandados pelo nosso Capitão Moreira. Da conversa com o guia, sentíamos que não havia a certeza de estarmos a caminhar na boa direcção. Próximo das 4 da manhã, hora a que deveríamos estar colocados para atacar, paramos numa clareira. Recordo que estava luar. O capitão reuniu os alferes e dialogamos sobre o que iríamos fazer em seguida. Eu iria com o meu grupo, contornar a posição pela esquerda e colocar-me para além da mesma, esperando a possível fuga do inimigo. Os outros dois grupos iriam desencadear o ataque. Os grupos da 395, cortariam a fuga pela direita.

Sentia que as ordens que o capitão estava a dar, iam-se desvanecendo. A voz, pouco a pouco, ia perdendo energia. Ele sentia que o que estava a dizer, não era possível. Parou e pediu-nos a opinião. Só recordo que desse diálogo, ficou a ideia, de que até ali, já sabíamos o caminho. Ainda ninguém tinha dado pela nossa presença. Haveria que lá voltar noutra altura mas, de forma, a chegar mais cedo.

VOLTAMOS PARA NAMBUANGONGO
Começávamos a subida do morro para entrar no nosso quartel, quando deparamos com um pequeno grupo comandado pelo Capitão Nelson Valente, que tinha ordens para assumir o comando dos vários grupos da operação, de voltarmos para trás, e ir procurar, um grupo de combate da 395, o do José Joaquim Delfim de Matos, meu colega do INEF, e que não dava sinal de si. Tinha sido retirada a autoridade do comando ao nosso Capitão Moreira. (Julgo até que, o capitão Valente, até àquela altura nunca tinha saído para aqueles lados). Quando estávamos a chegar, à entrada da picada para o "28 de Maio", da mesma saía o grupo perdido. Tinham apanhado uma queimada e viram-se com dificuldade para de lá sair. Via-se que vinham todos chamuscados e assustados. Tinham passado um mau bocado. Também o rádio não tinha funcionado e por isso não tinham podido avisar e pedir auxílio.

Mas o mais curioso desta história era de que todos os grupos, mesmo os da 395, tinham de voltar a Nambuangongo.

JULGAMENTO EM "CONSELHO DE GUERRA"
Viemos a saber, que o nosso comandante estava desiludido, (para não dizer fulo, porque não assisti aos acontecimentos) e queria levar todos os alferes a "conselho de guerra". As palavras que corriam eram mesmo estas. Ficámos todos atónitos. Não propriamente assustados, mas a pensar que tipo de guerra é esta, em que os superiores sem conhecerem a realidade do terreno, delineiam uma operação de grande envergadura sem conhecerem a realidade, sem nos mostrarem como nos devíamos movimentar e articular. Nós, julgando estar a pensar pelo melhor - ir numa outra altura mais bem preparados, iríamos ser acusados de quê?

Preparávamo-nos para ir para o morro do comando quando o nosso capitão Moreira, nos disse para não entrarmos. Entrou ele e soubemos depois que teria assumido que as decisões eram única e simplesmente da sua responsabilidade. "Os meus alferes não entram". E não entramos.

Mas ficou, logo, desde ali, um certo mal estar a partir, pelo menos, da atitude de retirarem o comando dos grupos ao nosso capitão e ter ficado o capitão Nelson Valente como responsável da procura do grupo perdido.

O REGRESSO DA 395 AO QUIXICO
Desta acção, no regresso, no dia seguinte, dos grupos da 395 ao Quixico, foram atacados a seguir ao Morro da Palmeira em que houve um morto e vários feridos. Esta será a história seguinte, já que acorri com o meu grupo e com o Dr. João Patrício ao local do ataque, onde se desenrolaram depois mais ataques.

O ESQUECIMENTO DE UM RÁDIO NA VIATURA
Ainda sobre esta acção ao "28 de Maio", é referido na obra citada em "os louvores ao nosso Batalhão e ao comandante" p.132, onde o autor diz que nesta acção "um patrulhamento entre Nambuangongo e Quixico, soldados da CCav 394 foram transportados em viaturas até um determinado ponto da picada, para aí se embrenharem a pé pelo interior da mata. Ter-lhes-á sido dito que o tempo dessa incursão era reduzido..." . Acrescenta mais o autor que um dos militares responsável pelas transmissões, ao ter deixado o rádio na viatura, esta falta "foi decisiva para suspender a missão", e que o nosso comandante ao tomar conhecimento deste episódio, ordenou que o Cap. Moreira abrisse um auto de averiguações sobre o comportamento do operador do rádio, "ao que o capitão terá respondido que, naquele caso, a haver um auto de averiguações teria que ser contra si próprio, tendo acabado por não haver qualquer tipo de sanção". 
Julgo que o nosso comandante nunca tomou conhecimento deste facto. Pela mesma razão, nunca o capitão Moreira deverá ter proferido tal frase, até porque perante o mesmo, assumi a responsabilidade da falta do referido rádio, razão porque não houve punições. 

A VERDADE DE CADA UM
Serve este meu testemunho, não para dizer que a verdade está de um ou do outro lado, mas para que uma outra opinião, ou, se quiserem, um outro lado da história, tenha visibilidade e sirva para confronto. 
Os relatos aqui apresentados, resultam de imagens nítidas gravadas na minha memória. Estas são as minhas memórias e se a operação não se realizou, não foi certamente, pela falta de um rádio.
Outras situações certamente aconteceram nesta operação, mas só estas ficaram no meu arquivo. Outros camaradas, espero, poderão relatá-las, aqui neste espaço.







sexta-feira, 16 de maio de 2008

A picada Nambuangongo - Zala

Este é o relato duma missão em coluna auto de Nambuangongo a Zala. Referi, aquando da história da camioneta vermelha, que iria contar uma outra de um capitão de engenharia que foi nomeado para uma peritagem de danos causados pela nossa tropa (destruição de folhas de zinco) em Vila Pimpa. Pelos vistos tinha sido o fazendeiro, instalado em Luanda que tinha exigido uma indemnização.

Vila Pimpa, tem a sua história. Alguma dessa história vem relatada em obras escritas por quem lá esteve e existem ainda relatos e fotos na internet. Julgo que é mesmo quem lá esteve e não quem por lá passou, pois que ali "terminava a guerra", já que não tinha saída para o Norte (Bessa Monteiro, Quibala e Toto).

Na altura, com uma companhia em Zala (a 368), Vila Pimpa estava abandonada. Mais tarde, com o 437, julgo que ocuparam, alem desta, também Bela Vista, no caminho para Quimbunbe e Ambriz e a Fazenda Madureira.

Gostaria de conhecer melhor a história e o sofrimento desta companhia enquanto esteve nesta posição. Fiquei com a ideia de que era uma unidade que ali tinha sido colocada por "castigo". Não sei se esta forma de pensamento existia nos responsáveis do Quartel General, quando delineavam o "movimento das tropas", mas que havia companhias e batalhões que eram beneficiados por lhes serem destinadas posições mais sossegadas, isso é uma verdade sentida que trouxe desta minha vida militar. Uma coisa é certa, os alferes que sofriam punições e que eram obrigados a mudar de unidade, muitos iam parar a Zala e, quando Zala já não podia receber mais, iam para Nambuangongo. Na curta passagem por estas paragens, foi uma das certezas que trouxe. Eram o "Penamacor" lá do sítio.

Desta deslocação, guardo uma cópia da ordem que recebi para a sua execução. Tem a data de 5 de Janeiro 1963. Ou seja, tínhamos dez a quinze dias de Nambuangongo.
Julgo termos chegado a este local, que nos mapas vem com o nome de Vila General Freire, ao entardecer de 21 de Dezembro. Os dias 22 e 23, foram destinados para em conjunto com o Batalhão 137 que íamos render, "passearmos" para conhecer os principais locais de acção. Num dia, para os lados de Zala atravessando o Wêmbia, até ao Morro das Pedras, no outro, para o lado contrário, o do Quixico, atravessando o Rio Cassamba e o Morro da Palmeira, ficando a "admirar" ao longe a Central do Quinguengo, ou 28 de Maio. Na altura, para mim, estas duas designações representavam o mesmo local. Posteriormente, vejo marcações diferentes nas cartas. Provavelmente, o local onde fui e que refiro na história "Não foi My Lay..." seria a Central do Quinguengo. Este local famoso, será objecto de uma outra história. No entanto, deixo aqui, para já, a informação que o camarada alferes me transmitiu ao mostrar-me o local de acesso junto à picada: "Ali, nunca alguém conseguiu chegar. Está tudo fortificado. Já apanhámos muita tareia".

No dia 24 de Dezembro, de repente, todo o Batalhão 137, desapareceu e ali ficamos sozinhos. Calor forte, chuva intensa. O gozo de tomar banho ao ar livre. A tristeza de à noite o bacalhau custar a engolir.

Neste intervalo de tempo, já tínhamos feito uma série de operações. Eu próprio, já tinha feito uma saída para estes lados, mas nunca até Zala. Desta vez calhou-me a mim.

Lá fui apresentado ao capitão de engenharia, que tinha vindo de avioneta até Nambuangongo e que ia, pela primeira vez, andar numa picada e logo nesta. Apesar de na viagem o senhor ter ido sempre comigo para onde eu ia, e apesar de termos conversado muito, nunca obtive a certeza da razão para tal punição. Houve, no decorrer desta guerra, muitos militares que, ou fizeram a guerra em gabinetes, ou estavam colocados em funções que não os obrigavam ao uso de armas. Este era do Regimento de Transmissões de Luanda, capitão, engenheiro, poderia ter sido mandado de avião fazer a peritagem, mas tanto castigo, só por maldade.

Nesse dia. de madrugada, já tinham saído, 3 grupos de combate (Múrias, Aragão e Chaves) para a picada a colocarem-se em pontos chave já conhecidos, onde o inimigo poderia estar activo. Isto, até meio caminho, porque do lado de Zala, estavam outros 3, pertencentes à 368.



Era uma coluna de reabastecimento de géneros alimentícios e outro material entre o qual um gerador de electricidade Coventry que ia numa plataforma construída nas traseiras de um jipão. Fiquei com a imagem da marca, e do cheiro porque quase sempre fui em pé, seguro a esta armação. Muito mais tarde, esta imagem foi de grande utilidade, porque já na Bela Vista - Huambo, em final de comissão e conferindo a carga de material para entrega ao outro Batalhão que nos ia render, o alferes Almeida Rego, chefe de secretaria e por inerência, encarregado deste tipo de material, sofria a tentar localizar um gerador que tinha desaparecido. Não sabia onde parava. Assistindo à conversa, só eu, poderia dar-lhe a informação que o salvaria de possíveis problemas. Tinha sido emprestado à 368 que o tinha deixado ao 437. Tudo, sem papéis.

Verificado tudo antes da saída. Rádios, munições, metralhadora, bazzoka, morteiro, enfermeiro, civis.
(estes eram os rádios necessários para esta deslocação)
Depois a saída para a esquerda, com uma pequena recta até ao Wêmbia. O primeiro local perigoso. Era um ribeiro que nesta altura das chuvas, só se podia atravessar por cima de umas pedras do lado esquerdo, mas que não ofereciam, mesmo assim, grande segurança. Numa dada altura, numa outra saída, alguns caíram e as armas ficaram lá. Só mais tarde, com menos corrente, puderam ser resgatadas. O atravessar das viaturas era feito entre o cuidado e a aceleração. A marca que este ribeiro nos deixou, resultou deste ficar dentro de uma mata cerrada e da demora em fazer esta travessia, que nos deixava muito expostos, especialmente o pessoal que tínhamos de colocar a fazer a segurança. Estes militares recolhiam na parte final da passagem com grande exposição ao inimigo, já que logo a seguir existia uma curva cerrada.

Depois, à esquerda os montes Macusso e Cauceque, o Rio Quilolo e mais à frente o Quima. A mata do café. Esta era uma zona em que o cafeeiro crescia pelos arbustos acima e cerrava a passagem. Com viaturas, não havia problemas, pois que rasgavam bem o que encontravam à frente. A pé, já o tínhamos feito de noite e existia o problema da designada cobra do café, dependurada nos arbustos, cuja picada era violenta. Nunca vi alguma. Existirá esta cobra? ou era história?

Chegávamos a meio do percurso e havia um bico de pato, local onde as viaturas faziam meia volta e marcavam esse trajecto no capim dando origem a um desenho parecido com o bico do dito. Mais à frente a camioneta vermelha. Subia-se. Tínhamos a informação de que era zona de ataques. Mas logo do outro lado, deparámos com o primeiro grupo da 368. Parámos, conversámos ali um pouco. Apreciamos as vistas do alto do monte.

Um dos militares apresenta-me o Rui. "Tu não conheces o Rui?" Fiquei a olhar para o jovem sorridente barbado de quico na cabeça. Igual a tantos outros. "É o Rui Mendes do cinema e da televisão". Pois talvez muitos não saibam, mas este foi um dos jovens que passou por ali os maus bocados desta guerra.

Ainda vim a encontrar um segundo grupo, no morro do Albino. Mais à frente o Quimazangue, donde saía à esquerda, uma picada luxuriante para o Ambriz, mas via-se nitidamente que as viaturas há muito tempo não passavam por ali. Mais à frente e antes da Bela Vista, uma ponte destruída, não permitia a passagem.

Mais 3 ou 4 quilómetros, começava-se a subir para Zala. Cá em baixo o posto, meio destruído mas ainda com a esfera armilar visível.

Instalado o pessoal. Entregue duas viaturas avariadas que já vinham a reboque. Este era o pão nosso de cada dia. Acontecia frequentemente. Havia agora que apresentar o capitão de engenharia, para a resolução do assunto que o levava lá. Da conversa dos dois capitães, ficou deliberado que eu continuaria a minha marcha até Vila Pimpa. Eram cerca de 6 quilómetros. Nunca pensei que ainda teria aquela tarefa para cumprir e disse ao capitão que estranhava aquela decisão, porque sempre pensara que sendo aquele lugar na zona que lhe estava atribuída que deveria ir lá o seu pessoal.
Respondeu-me que não tinha viaturas, nem pessoal para lá ir e que quem faz 30 quilómetros faz mais 6. "Venha ver, como não é longe" E levou-me a um ponto mais alto donde se via ao longe uma zona branca.

"Está a ver? é já ali".

Já estava decidido que eu ia, mas achei que pelo menos deveria ir comigo um condutor que conhecesse o caminho. Lá foi o capitão procurar um condutor.
Entretanto, o meu pessoal que já tinha entrado em contacto com os outros e sabedores de que teríamos que ir a Vila Pimpa, vieram-me dizer que os de Zala já lá não iam há meses e que aquilo já estava na mão dos "turras". Também sabíamos da história, que a primeira mina que tinha rebentado em Angola tinha sido precisamente neste trajecto, meio ano atrás.

Não sei se o capitão encontrou ou não condutor disponível para ir. Não sei se foi resultado da conversa entre os dois capitães. Sei que me trazia uma solução. As averiguações far-se-iam ali mesmo, à distância. Não era preciso ir lá . Tomou-se nota. Tantas chapas destruídas. Confirmado e testemunhado.

E aqui está uma história da guerra. Que será feito do capitão de engenharia. Alguém terá ouvido esta história da boca do dito capitão cujo nome já não recordo?

Mas ainda faltava o regresso. Se para lá as coisas foram fáceis, na volta já não se passou do mesmo modo. Era uma característica nas histórias desta picada, na ida ou na volta, havia guerra.

Prometeu-me o capitão que os mecânicos iriam trabalhar toda a noite nas duas viaturas avariadas e que sairia na manhã seguinte. Sentei-me um pouco a conversar com o médico da minha companhia, o Joaquim Pires dos Reis que tinha sido destacado para Zala, para substituir o médico daquela companhia o Dr. Patrício, que se encontrava itinerante em serviço de estomatologia.(Uma outra história que contarei). Sem vontade para dormir, achou por bem, o Joaquim Pires, que eu tomasse uma pequena pastilha para o efeito. De imediato adormeci. Passados 5 minutos, acorda-me o médico, informando-me que o comandante tinha dado ordem para o regresso imediato e "que atrelasse as viaturas e que viesse assim mesmo".

É fácil de imaginar o peso deste regresso. Fomos atacados pelo menos 4 vezes. No último ataque, mesmo em frente da posição onde estava o Aragão que ao descer do sítio onde estava, levou um tiro no invólucro vazio da granada de bazooka que trazia na mão. Este alferes, mais tarde foi atingido, mas desta vez foi mesmo na perna. É dos poucos camaradas com quem ainda convivo e com quem recordo estas histórias.

Para chegar a Nambuangongo, tive de pedir via rádio para que enviassem uma outra GMC cá abaixo ao Wêmbia, porque a GMC que trazia avariada, não conseguia passar o rio.

domingo, 11 de maio de 2008

A nossa Nambuangongo



Tentarei dar uma imagem deste local de forma a melhor se perceberem as histórias que tiveram início a partir daqui.

Nambuangongo com 2 morros, um mais elevado onde se encontra a Igreja e onde termina a curta pista de aviação. Uma pista entre 300 e os 400 metros. Gostaria de ouvir a opinião doutros que por lá passaram sobre esta minha leitura do comprimento. Os aviões aterravam a subir e saíam a descer, o que equivalia a dizer que muitos desciam com o máximo de velocidade e desapareciam deixando-se cair para adquirir ainda mais velocidade. Era um conforto, vê-los aparecer passados alguns segundos a subir.

No final da pista, o heliporto construído havia pouco tempo, pelo, na altura, tenente piloto-aviador Rego de Sousa. Ali perto, a padaria. Dos bons sabores que ficaram - o pão quente de madrugada.

À esquerda da Igreja, a sacristia que servia de caserna ao meu grupo de combate. Entre a Igreja e o depósito da água, o cemitério, na altura já com algumas campas. Como estará agora?

Nesse morro estava a minha companhia. Igualmente no mesmo espaço encontravam-se as oficinas de manutenção de viaturas e já na descida uma destacamento da intendência (Manutenção Militar), responsável pela alimentação dos militares desta zona, comandada por um capitão e que tinha ainda um alferes, que mais tarde foi um dos nossos deputados e ministro.

Este, recordo-o aqui como sendo a pessoa que durante a nossa estadia nesta posição, nos ajudava sempre nas partidas e muito especialmente nas chegadas, confortando-nos com as suas palavras e as suas histórias de boa disposição. Muitas vezes velando para que quando chegássemos não faltasse uma refeição quente a acompanhar o descanso emocional. Obrigado António.

O último edifício à direita com telhado era onde dormíamos.



A pista com duas avionetas Auster. Nesta foto é visível a placa do heliporto






(foto de António F. Moreno Cardeira - 1969 com um carro de combate do Capitão Mendes Paulo utilizados neste período)
Nesta foto, retirada da internet, vê-se com mais pormenor o edifício que antes da guerra era o do chefe de posto e que na altura nos albergava.

Num quarto eu, o Jorge Ribeiro Aragão (uma das nossas cruzes de guerra e ferido em combate) e o Manuel Maria Beça Múrias (já falecido e que foi chefe de redacção de "O Jornal"). Noutro quarto, o médico Joaquim Pires dos Reis com quem continuo a conviver em Coimbra, e o Valdemar de Castro Chaves. Havia ainda um gabinete e o quarto do capitão Moreira, comandante da Companhia de
Cavalaria nº. 394.




A janela do nosso quarto.








No outro morro ficava a Companhia de Comando e Serviços (CCS) do Batalhão de Cavalaria nº. 399. Das outras duas companhias, uma, a 395, estava no Quixico, a cerca de 30km a leste de Nambuangongo e a outra, a 396 em Quimbumbe com acesso distante, já que a ida por Zala/Bela Vista não podia ser realizada pois a ponte entre estas duas localidades não era transitável.

A foto abaixo, mostra a Nambuangongo actual com a visão da picada em baixo à direita em direcção a Zala e o morro à esquerda em cima ( o morro da Palmeira e que também será objecto de uma história) que era necessário passar para se ir ao Quixico.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

A lembrança do Fernando Assis Pacheco

Ao recordar o Major Moreira, recentemente desaparecido, vieram-me à memória os que connosco viveram a mesma guerra e que também já nos deixaram. Não me esquecerei de os referir e inclui-los nestas histórias. Mas, há um o Fernando Assis Pacheco, que aparece-me com mais frequência. Amigo aqui de Coimbra. Igualmente do curso de oficiais milicianos de cavalaria em Santarém. Das viagens de combóio ou automóvel que realizámos nos fins de semana. Conversando os dois. Ou melhor ainda, deliciando-me a ouvir "dizer coisas", coisas interessantes da vida, mas sempre limpas de intelectualidade.
Mais tarde voltarei ao Fernando quando me referir à razão que nos levou a embarcar para Angola e a não fugir.
O Fernando também viveu nos mesmos espaços à volta dos 30km da picada Nambuangongo / Zala, que por muitos anos que ainda possamos viver, será difícil de a esquecer. Serão difíceis de esquecer os locais onde sabíamos de antemão que algo poderia acontecer. Este o da camioneta vermelha era um deles. Nas suas palavras está todo o sentir que nos apertava naquele momento.
Para já fica esse naco da sua poesia, saída do livro Catalabanza, Quilolo e volta:

A camioneta vermelha (sobre a qual já atrás escrevi).

Se há lugar na vossa geografia
para um friável coração de adobe
digo-vos que não trouxe muito mais
dos tiros da Camioneta Vermelha.

A coluna de Zala vinha vindo
tarda como sempre e não se ouviram
durante muitas horas os motores
nesse alto da Camioneta Vermelha.

A gente deitava-se nos abrigos,
deitava-se no silêncio e respondia
somente alguma grita de macacos
ali perto na Camioneta Vermelha.

Por ironia, eu estava lendo
um romance de Cardoso Pires
ou talvez poemas de Ruy Belo
sobre a cidade na Camioneta Vermelha.

Digo-vos que não trouxe muito mais
dos tiros cruzados de arma fina
quando o adobe começou a estalar
no meu peito na Camioneta Vermelha.

Queria contar tanta coisa veloz
então acontecida mas não posso
recordar senão esse estampido
caindo súbito na Camioneta Vermelha.

Sou um desgraçado poeta da província
com um rio que no Verão é areia,
algumas casas, algumas flores belíssimas
despropositadas na Camioneta Vermelha.

O meu modo é cantar e eu canto
mesmo que apeteça mandar um balázio
no peito de adobe, o mesmo peito
que estremecia na Camioneta Vermelha.

Por isso aqui estou eu para nuns versos
dizer que o mundo acaba e não acaba
quando a massa de um coração frágil
lembra a cidade entrevista ao longe

longe do alto da Camioneta Vermelha.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Recordando o Major Luís de Sousa Moreira (2)

Do meu amigo e camarada cavaleiro recebi esta "lembrança" que merece aqui a transcrição:

"Comecei a conhecer melhor o Luís Moreira, quando em 1966 nos reunimos no RC3, em Estremoz, para formar o BCAV1883. Em Angola comandámos, ele a CCav1536(Balacende) e eu a CCav1537(Quicabo e Intervenção). No Leste estivemos ele, em Teixeira de Sousa, e eu no Luacano.
Tive assim oportunidade de o conhecer bem, admirar e fazer uma amizade que ficou para toda a vida.
No estreitar da amizade compartidos bons momentos, de que guardo a memória mais gratificante, e as tempestades que a vida nos reservou.
O Major Moreira foi um, dos muito poucos na Arma da Cavalaria, que na Guerra só esteve no "mato". Ao contrário de muitos, nunca lhe tocaram, polícias, quartéis generais e ares condicionados.
Cansado e desiludido tentou e conseguiu passar à situação de Reserva; nesta situação, ainda foi mobilizado para como Major fazer uma comissão num Comando Operacional na Guiné!
Sem ressentimentos tentou e conseguiu iniciar uma carreira na vida civil, com sucesso.
Após o "25 de Abril" acenaram-lhe com o regresso ao Activo.
Não quis assim ser mais um no amontoado combóio revolucionário de "sindicalistas","lutadores antifascistas","mutilados", "traumatizados" e "objectores de consciência", da última hora.
Independente e livre, seguiu o seu caminho.
Morreu como sempre viveu: sem incomodar.
Hoje para muitos de nós é já Saudade.
Silêncio: MORREU UM SOLDADO.
João Sena"

domingo, 4 de maio de 2008

Recordando o Major Luís de Sousa Moreira


A foto, ao lado, parece apresentar 3 jovens de "férias". Em Nambuangongo.

Às vezes, lá havia uma folga, um dia ou outro em que o sorriso aparecia, já que não nos tinha calhado sair.

E aqui estamos nós, aprumados, como era timbre da nossa companhia, frente à simbólica igreja de Nambuangongo. Eu, o capitão Moreira e o Jorge Ribeiro Aragão.

Retomo, hoje, estas histórias para aqui lembrar que o Homem do meio, o Major Luís Francisco Pinto de Sousa Moreira, deixou-nos no dia 25 de Maio.

Tínhamos estado a recordá-lo na confraternização do 399 realizada no dia 27 em Almeirim, sem sabermos que estaria, nessa altura, a caminho da sua última morada.

Costumo dizer que aprendi muito com os militares. Muito especialmente com este. Disso darei conta nestas histórias.

Há pessoas que aparecem na nossa vida e sentimos que as mesmas são merecedoras da nossa atenção e que iremos aprender muito com elas. Mais tarde confirmamos que nos marcaram.

Porque é que este oficial de cavalaria me marcou? À parte das características de grande homem, como as da capacidade intelectual, valentia, valor ético, etc., gostaria de salientar as que apreciei com mais atenção, colocando em primeiro lugar a assunção das responsabilidades. Este homem nunca pôs a culpa para outrem. Aprendi a ouvir com atenção. Aprendi com ele como apresentar coragem na voz. Aprendi observando naquele modelo que exercia em todos nós uma grande atracção como exemplo. Jamais esquecerei.

Foi o oficial mais aprumado que vi na minha curta carreira militar.

Era um homem livre. Dizia o que tinha para dizer - sempre com extrema lisura.

Esta sua maneira de estar na vida, fez com que abandonasse a vida militar, muito cedo, no posto de major.

Continuarei aqui a escrever, sempre com a sua imagem presente.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Não foi My Lay. Não foi Wiriamu. Não matámos velhos e crianças

Esta segunda história, relembra o que poderia ter sido um My Lay do Vietnam (1968) em que morreram centenas de velhos, mulheres e crianças, mortas pelas tropas americanas, ou Wiriamu de Moçambique (1972) em que militares portugueses, mataram mais de uma centena de mulheres e crianças.
Antes em 1963 poderia ter acontecido, em Nambuangongo, mas não aconteceu (e agora é a ocasião para o dizer) porque eu não quis.

Ao contrário da primeira história, em que a deslocação se fez em viaturas, esta efectuou-se a pé, carregados, por carreiros, no meio das matas, subindo e descendo.

Recordo um dia de Julho de 1963, ainda não eram 4 horas da madrugada. Estávamos todos bem colocados para o ataque a um acampamento de terroristas (emprego os termos que então utilizávamos). Tínhamos atrás de nós e como protecção mais um pelotão do 437 comandado pelo alferes Laia. Esta era a hora limite para termos sucesso numa emboscada a um quartel. Nesta zona, o sucesso era difícil, pois que éramos detectados antes de chegarmos ao objectivo. Por outro lado, entre as 4 e 5 da manhã, levantavam-se os que viviam nos acampamentos, ou para seguirem as suas marchas, ou para irem trabalhar nas lavras.

Dois dias antes, o comandante tinha-me levado num dornier (também conhecido por DO26, avião de reconhecimento de grande maneabilidade) a sobrevoar o local e mostrando-me o que ele dizia ser um acampamento de passagem para a central do Quinguengo (voltarei mais tarde a falar nesta central)(ver no mapa com a outra designação pela qual também conhecida "Central do 28 de Maio"). Estariam, ali, portanto, militares. Propriamente sobrevoar o local, não acontecia, porque o passar de um avião por cima de um objectivo, dava origem a que a segurança desse objectivo se reforçasse nos dias seguintes ou até acontecia que o pessoal abandonasse o local, pois sentiam-se descobertos.

Vi que havia terreno cultivado à volta (lavras) e desconfiei logo de que não deveria ser quartel militar.

Preparámos a saída. Uma carta desenhada do local, uma bússola e binóculos. Uma ração de combate, água, armas e munições. Na altura a espingarda era a FN. Dois carregadores nas bolsas e mais dois nos bolsos. Duas granadas ofensivas por militar e eu levava, simbolicamente, uma defensiva, mais a bazuka, o morteiro 60 sem o prato e respectivas munições.

Saí com o meu pelotão e como, na altura, a companhia do Batalhão 437 do saudoso Capitão Casquilho (que eu já conhecia de Santa Margarida) ainda estava em fase de aprendizagem connosco, antes de seguirem para Zala, saiu também comigo um pelotão da mesma. Nesse tempo estava também em Nambuangongo uma secção de cães dos paraquedistas, comandada por um furriel e com 6 soldados, cada um com o seu cão. Comigo iriam sair 3 soldados com 3 cães pisteiros.

Recordo as orientações acordadas com o furriel dos cães - só iriam ser solicitados se considerasse necessário e marchariam atrás do nosso pelotão. O outro pelotão procuraria marchar afastado de nós, pelo menos 100 metros e protegia-nos quando seguíssemos a descoberto.

Relembro que, nesta zona de Nambuangongo, as operações nunca demoravam mais de 2 dias. Era ir, bater e retirar rápido, diria mesmo, fugir. A partir da altura em que estávamos descobertos nunca mais nos largavam.

Da marcha, recordo a passagem por uma anhara, uma larga planície cheia de água em que, por vezes, tínhamos água até à cintura. Neste terreno descoberto, soube bem ter tido o outro pelotão na retaguarda em protecção. Depois de passarmos, protegemos da mesma maneira, os outros.

Foi precisamente, nesta passagem, que os cães mais se movimentaram. Passavam por nós, por baixo das nossas pernas (eram pastores alemães), possantes, nervosos, o que me fez pensar que tinham farejado alguém. Apesar de saber que tinha a protecção do outro pelotão, foram momentos difíceis, aquele caminhar a descoberto. Não era normal aquele tipo de terreno na nossa zona.

De morro em morro, referenciados na carta e tirando o azimute fomos direitinhos ao morro sobranceiro do quartel do inimigo. Seriam 2 horas da manhã?. Instalámo-nos e comecei a ouvir à nossa direita uma tosse rouca de indivíduo idoso, logo de seguida, lá em baixo choro de crianças. Num espaço de silêncio de cerca de 10 minutos em que todos esperavam a minha ordem para atacar, recebi o pedido de informação, passado boca a boca vindo do outro alferes, de quando é que atacávamos e por fim veio um soldado, do próprio pelotão, fazer a mesma pergunta. Foi, quando do outro lado, nos detectaram, ouvimos muitos gritos e fizeram fogo sobre nós. Já não foi preciso dar ordem, foi um carregar de munições sobre o inimigo.

Esperamos por um certo silêncio e descemos. Não encontramos ninguém. Dei ordem a metade do pessoal para destruir as cubatas e a outra metade para seguir pelo caminho que saía do outro lado do acampamento no encalço dos fugitivos. Acompanhei este grupo e vimos sangue e alguns restos de roupa, mas não encontramos uma única pessoa do inimigo.

Tudo feito com rapidez, não mais de 10 minutos, ordem para regressar. Dos despojos trazidos, recordo uma esteira e duas quindas (cestos cónicos), das quais uma delas ainda está comigo.

No regresso, até à picada onde iríamos encontrar viaturas que nos trariam para Nambuangongo, tivemos alturas em que corremos mesmo. Foi quando encontramos uma queimada pela frente que nos iria cercar. Muitos dos momentos difíceis que passamos nas matas resultavam das queimadas que, por vezes, se tornavam ameaçadoras. Recordo que um dos militares me disse: "meu alferes temos de fazer um contra fogo", coisa que eu nunca tinha feito. E foi um deles, que estudou o melhor sítio e iniciou uma queimada que, provavelmente nos terá salvo. Quem terá sido esse militar? Quem ler esta história que, faça o favor de indagar.

Nunca nenhum dos meus militares fez a mínima referência do género: "se tivéssemos atacado mais cedo, se o meu alferes não tem demorado tanto tempo a tomar a decisão de atacar, tínhamos morto uma data de terroristas". Era a "glória" dos combatentes era "matar", fazer prisioneiros e apanhar armas. Desta vez, não aconteceu. Mas, senti, no regresso e já em pleno Nambuangongo, da parte do outro alferes que poderia ter havido mais sucesso, se...

Estou a contar isto pela primeira vez. Senti, estes anos todos e muito especialmente quando ouvi falar do My Lay e mais tarde de Wiriamu, que o mesmo poderia ter acontecido comigo e que a dor, o remorso, ter-me-ia acompanhado até hoje, ou quem sabe, ter-me-ia destruído mais cedo.

Esta é uma mensagem que aqui deixo. É mais dirigida aos militares que comigo estiveram do que propriamente para a história. Gostaria que assim fosse compreendida

sábado, 19 de abril de 2008

A camioneta vermelha - Uma das histórias sobre a mesma


Hoje, dia 19 de Abril, resolvi iniciar a escrita destas memórias. No decorrer do tempo que vou dedicar a esta tarefa, procurarei aqui escrever sobre uma série de problemas e razões ligadas à nossa presença na guerra colonial. Lembrarei igualmente todos aqueles que comigo estiveram presentes directa ou indirectamente e cuja recordação me ajuda, neste momento, a colocar aqui os factos que senti e sentimos, apesar de passados cerca de 45 anos.
Para já, e para início, recordarei a minha história da camioneta vermelha (se pesquisarem na internet, colocando entre aspas – camioneta vermelha – irão encontrar outras histórias, entre as mesmas, um poema do Fernando Assis Pacheco).

A camioneta vermelha, marcava um espaço de paragem entre Nambuangongo-Zala. Muitas vezes este local era referido, nas informações militares publicadas nos nossos jornais “Na zona da camioneta vermelha, a coluna dos nossos militares sofreu…”.
Era uma camioneta novinha a que já lhe faltava o motor. Dizia-se, na altura, que tinham sido os paraquedistas. Teriam sido? Quem foi e que se estiver a ler a história que confirme ou relate a verdade.

Estava num caminho de acesso a um espaço onde tinham existido edifícios duma fazenda e encostada a um muro.

Em histórias sequentes recordarei as belezas e os momentos difíceis vividos nos cerca de 30 quilómetros da picada Nambuangongo – Zala.

Talvez Junho de 1963. Pertencíamos à 394. Estávamos em Nambuangongo, no morro junto à Igreja. A companhia que estava em Zala, e que não pertencia ao nosso Batalhão (a 368?), encontrava-se nos limites do esgotamento físico e material (dinheiro). Já não vinha reabastecer-se a Nambuangongo porque talvez não tivesse ou viaturas ou pessoal suficiente. Os aviões militares de reabastecimento, já não pousavam em Zala, pois a pista não oferecia condições de segurança. Na altura, no fim da pista (a antiga), de lado estava um destruído. Os aero taxis eram os únicos que se aventuravam mas custavam caro.
Recebi a missão, de ir levar reabastecimento a meio do caminho. Esse meio de caminho, ficava num bico de pato (não era o de Zala) onde as viaturas podiam dar a volta, mas, recebi o pedido do alferes de Zala, para ir um pouco mais à frente, até à camioneta vermelha que ficava antes da Fazenda Madureira.
A saída para Zala, obrigava a cuidados redobrados porque já sabíamos que iríamos, na ida ou na volta, sofrer ataques do inimigo. Havia que antes de partir preparar o grupo (cerca de 30 homens) para uma boa disciplina radio e os pequenos grupos bem estruturados para reagir com uma certa independência. Levava à frente o furriel Rebocho e atrás no ultimo jipe o furriel Calado (Alpiarça). Conseguimos, para esta saída, 3 telefones que no decorrer da deslocação verificamos que funcionavam mal ou mesmo não funcionavam.
A fotografia que acompanha esta história (das poucas que possuo – o nosso comandante não permitia o uso de máquina fotográfica) mostra a colocação de uma metralhadora pesada (browning .50?) num Unimog, no dia anterior à saída, por trás do edifício da Manutenção Militar (quem ia da 394 para a CCS, do lado esquerdo já no fim da descida. Normalmente as metralhadoras que se levavam eram ligeiras. Desta vez, resolvi, juntamente com os dois jovens da fotografia (quem serão?) arranjar uma ligação ao chassis do Unimog. Resultou. Na vinda foi de grande utilidade e eficácia.
Mas, um grupo de mecânico da CCS, sabendo que íamos para aqueles lados, veio pedir para me acompanhar na deslocação. Isto de haver pessoal a oferecer-se para uma saída em direcção a Zala, não era normal e para mais mecânicos. Pediam-me ainda para levar um atrelado. Diziam que tinham autorização do nosso comandante.
“E porque é que querem ir na coluna?” (a saída com militares não habituados às situações características daquele local e ainda para mais não habituados a sair comigo, não me agradava). Responderam-me que pretendiam ir à camioneta vermelha tirar e trazer o motor.
Dissuadi-os, dizendo que a mesma já não possuía motor. Ficaram um pouco desapontados, mas acrescentaram que uma camioneta não possui só motor. Tem o diferencial, suspensões, rodas, etc. E foram.

Chegamos, à dita zona, instalamo-nos protegidos e esperamos. Os mecânicos começaram a descobrir que ainda havia muita coisa boa. Viraram a camioneta de pernas para o ar. Cabos guinchos etc. em função e lá estava a camioneta esventrada.
Foi certamente assim que muitos que nos seguiram a encontraram.
Foi um sair de peças.
Demoraram a chegar os de Zala. Mas, quando apareceram na curva do alto da descida, começou a saraivada, para eles e para nós. Da nossa parte, porque estávamos abrigados, só as viaturas é que sofreram. Um dos jipes andou sempre, para recordação, com um buraco no conta quilómetros. Do outro lado foi preciso mandarmos morteiradas para chegarem cá abaixo. Levaram o reabastecimento e ainda hoje, recordo o pedido do meu camarada, para que só saísse dali quando eles chegassem a Zala. Nós éramos o único grupo que os poderia socorrer se fossem atacados no regresso. Garanti-lhes e estive sempre em contacto até ouvir a voz do radio telegrafista a dizer: chegamos.
A camioneta vermelha, um símbolo e um local que nos marcou.
Soube posteriormente, que os ditos mecânicos, venderam as peças em Luanda. Ficou comigo, como recordação a matrícula da mesma, que ofereci a um dos meus netos e que pode agora com este relato, começar a perceber o que foi esta guerra.
Ao contar esta história, poderá acontecer que os descendentes dos donos da camioneta possam accionar a justiça e tentar localizar os rapazes de então para exigir indemnização. (O próximo relato, que aqui farei, recorda uma deslocação a Zala a acompanhar um capitão de engenharia, vindo de Luanda, que ia realizar uma peritagem sobre um pedido de indemnização de um fazendeiro de Vila Pimpa, a viver em Luanda, porque o exército português tinha destruído folhas de zinco na sua fazenda).
Deve ter prescrito. Descansem. Mas a história é que não pode prescrever.