sábado, 19 de abril de 2008

A camioneta vermelha - Uma das histórias sobre a mesma


Hoje, dia 19 de Abril, resolvi iniciar a escrita destas memórias. No decorrer do tempo que vou dedicar a esta tarefa, procurarei aqui escrever sobre uma série de problemas e razões ligadas à nossa presença na guerra colonial. Lembrarei igualmente todos aqueles que comigo estiveram presentes directa ou indirectamente e cuja recordação me ajuda, neste momento, a colocar aqui os factos que senti e sentimos, apesar de passados cerca de 45 anos.
Para já, e para início, recordarei a minha história da camioneta vermelha (se pesquisarem na internet, colocando entre aspas – camioneta vermelha – irão encontrar outras histórias, entre as mesmas, um poema do Fernando Assis Pacheco).

A camioneta vermelha, marcava um espaço de paragem entre Nambuangongo-Zala. Muitas vezes este local era referido, nas informações militares publicadas nos nossos jornais “Na zona da camioneta vermelha, a coluna dos nossos militares sofreu…”.
Era uma camioneta novinha a que já lhe faltava o motor. Dizia-se, na altura, que tinham sido os paraquedistas. Teriam sido? Quem foi e que se estiver a ler a história que confirme ou relate a verdade.

Estava num caminho de acesso a um espaço onde tinham existido edifícios duma fazenda e encostada a um muro.

Em histórias sequentes recordarei as belezas e os momentos difíceis vividos nos cerca de 30 quilómetros da picada Nambuangongo – Zala.

Talvez Junho de 1963. Pertencíamos à 394. Estávamos em Nambuangongo, no morro junto à Igreja. A companhia que estava em Zala, e que não pertencia ao nosso Batalhão (a 368?), encontrava-se nos limites do esgotamento físico e material (dinheiro). Já não vinha reabastecer-se a Nambuangongo porque talvez não tivesse ou viaturas ou pessoal suficiente. Os aviões militares de reabastecimento, já não pousavam em Zala, pois a pista não oferecia condições de segurança. Na altura, no fim da pista (a antiga), de lado estava um destruído. Os aero taxis eram os únicos que se aventuravam mas custavam caro.
Recebi a missão, de ir levar reabastecimento a meio do caminho. Esse meio de caminho, ficava num bico de pato (não era o de Zala) onde as viaturas podiam dar a volta, mas, recebi o pedido do alferes de Zala, para ir um pouco mais à frente, até à camioneta vermelha que ficava antes da Fazenda Madureira.
A saída para Zala, obrigava a cuidados redobrados porque já sabíamos que iríamos, na ida ou na volta, sofrer ataques do inimigo. Havia que antes de partir preparar o grupo (cerca de 30 homens) para uma boa disciplina radio e os pequenos grupos bem estruturados para reagir com uma certa independência. Levava à frente o furriel Rebocho e atrás no ultimo jipe o furriel Calado (Alpiarça). Conseguimos, para esta saída, 3 telefones que no decorrer da deslocação verificamos que funcionavam mal ou mesmo não funcionavam.
A fotografia que acompanha esta história (das poucas que possuo – o nosso comandante não permitia o uso de máquina fotográfica) mostra a colocação de uma metralhadora pesada (browning .50?) num Unimog, no dia anterior à saída, por trás do edifício da Manutenção Militar (quem ia da 394 para a CCS, do lado esquerdo já no fim da descida. Normalmente as metralhadoras que se levavam eram ligeiras. Desta vez, resolvi, juntamente com os dois jovens da fotografia (quem serão?) arranjar uma ligação ao chassis do Unimog. Resultou. Na vinda foi de grande utilidade e eficácia.
Mas, um grupo de mecânico da CCS, sabendo que íamos para aqueles lados, veio pedir para me acompanhar na deslocação. Isto de haver pessoal a oferecer-se para uma saída em direcção a Zala, não era normal e para mais mecânicos. Pediam-me ainda para levar um atrelado. Diziam que tinham autorização do nosso comandante.
“E porque é que querem ir na coluna?” (a saída com militares não habituados às situações características daquele local e ainda para mais não habituados a sair comigo, não me agradava). Responderam-me que pretendiam ir à camioneta vermelha tirar e trazer o motor.
Dissuadi-os, dizendo que a mesma já não possuía motor. Ficaram um pouco desapontados, mas acrescentaram que uma camioneta não possui só motor. Tem o diferencial, suspensões, rodas, etc. E foram.

Chegamos, à dita zona, instalamo-nos protegidos e esperamos. Os mecânicos começaram a descobrir que ainda havia muita coisa boa. Viraram a camioneta de pernas para o ar. Cabos guinchos etc. em função e lá estava a camioneta esventrada.
Foi certamente assim que muitos que nos seguiram a encontraram.
Foi um sair de peças.
Demoraram a chegar os de Zala. Mas, quando apareceram na curva do alto da descida, começou a saraivada, para eles e para nós. Da nossa parte, porque estávamos abrigados, só as viaturas é que sofreram. Um dos jipes andou sempre, para recordação, com um buraco no conta quilómetros. Do outro lado foi preciso mandarmos morteiradas para chegarem cá abaixo. Levaram o reabastecimento e ainda hoje, recordo o pedido do meu camarada, para que só saísse dali quando eles chegassem a Zala. Nós éramos o único grupo que os poderia socorrer se fossem atacados no regresso. Garanti-lhes e estive sempre em contacto até ouvir a voz do radio telegrafista a dizer: chegamos.
A camioneta vermelha, um símbolo e um local que nos marcou.
Soube posteriormente, que os ditos mecânicos, venderam as peças em Luanda. Ficou comigo, como recordação a matrícula da mesma, que ofereci a um dos meus netos e que pode agora com este relato, começar a perceber o que foi esta guerra.
Ao contar esta história, poderá acontecer que os descendentes dos donos da camioneta possam accionar a justiça e tentar localizar os rapazes de então para exigir indemnização. (O próximo relato, que aqui farei, recorda uma deslocação a Zala a acompanhar um capitão de engenharia, vindo de Luanda, que ia realizar uma peritagem sobre um pedido de indemnização de um fazendeiro de Vila Pimpa, a viver em Luanda, porque o exército português tinha destruído folhas de zinco na sua fazenda).
Deve ter prescrito. Descansem. Mas a história é que não pode prescrever.

Um comentário:

A. João Soares disse...

História bem contada. O espírito de ganância dos mecânicos que não recearam o risco, para obter as peças. Se tinham dúvidas, ficaram a saber que os combatentes não exageram naquilo que contam!
Outro aspecto caricato é o das folhas de zinco que mostra como muita gente tem um sentido de posse exagerado e falta de noção das proporções e prioridades. Qual o futuro que esperavam que viesse para as folhas de zinco, juntamente com todos os haveres?
Cumprimentos
A. João Soares