sexta-feira, 25 de abril de 2008

Não foi My Lay. Não foi Wiriamu. Não matámos velhos e crianças

Esta segunda história, relembra o que poderia ter sido um My Lay do Vietnam (1968) em que morreram centenas de velhos, mulheres e crianças, mortas pelas tropas americanas, ou Wiriamu de Moçambique (1972) em que militares portugueses, mataram mais de uma centena de mulheres e crianças.
Antes em 1963 poderia ter acontecido, em Nambuangongo, mas não aconteceu (e agora é a ocasião para o dizer) porque eu não quis.

Ao contrário da primeira história, em que a deslocação se fez em viaturas, esta efectuou-se a pé, carregados, por carreiros, no meio das matas, subindo e descendo.

Recordo um dia de Julho de 1963, ainda não eram 4 horas da madrugada. Estávamos todos bem colocados para o ataque a um acampamento de terroristas (emprego os termos que então utilizávamos). Tínhamos atrás de nós e como protecção mais um pelotão do 437 comandado pelo alferes Laia. Esta era a hora limite para termos sucesso numa emboscada a um quartel. Nesta zona, o sucesso era difícil, pois que éramos detectados antes de chegarmos ao objectivo. Por outro lado, entre as 4 e 5 da manhã, levantavam-se os que viviam nos acampamentos, ou para seguirem as suas marchas, ou para irem trabalhar nas lavras.

Dois dias antes, o comandante tinha-me levado num dornier (também conhecido por DO26, avião de reconhecimento de grande maneabilidade) a sobrevoar o local e mostrando-me o que ele dizia ser um acampamento de passagem para a central do Quinguengo (voltarei mais tarde a falar nesta central)(ver no mapa com a outra designação pela qual também conhecida "Central do 28 de Maio"). Estariam, ali, portanto, militares. Propriamente sobrevoar o local, não acontecia, porque o passar de um avião por cima de um objectivo, dava origem a que a segurança desse objectivo se reforçasse nos dias seguintes ou até acontecia que o pessoal abandonasse o local, pois sentiam-se descobertos.

Vi que havia terreno cultivado à volta (lavras) e desconfiei logo de que não deveria ser quartel militar.

Preparámos a saída. Uma carta desenhada do local, uma bússola e binóculos. Uma ração de combate, água, armas e munições. Na altura a espingarda era a FN. Dois carregadores nas bolsas e mais dois nos bolsos. Duas granadas ofensivas por militar e eu levava, simbolicamente, uma defensiva, mais a bazuka, o morteiro 60 sem o prato e respectivas munições.

Saí com o meu pelotão e como, na altura, a companhia do Batalhão 437 do saudoso Capitão Casquilho (que eu já conhecia de Santa Margarida) ainda estava em fase de aprendizagem connosco, antes de seguirem para Zala, saiu também comigo um pelotão da mesma. Nesse tempo estava também em Nambuangongo uma secção de cães dos paraquedistas, comandada por um furriel e com 6 soldados, cada um com o seu cão. Comigo iriam sair 3 soldados com 3 cães pisteiros.

Recordo as orientações acordadas com o furriel dos cães - só iriam ser solicitados se considerasse necessário e marchariam atrás do nosso pelotão. O outro pelotão procuraria marchar afastado de nós, pelo menos 100 metros e protegia-nos quando seguíssemos a descoberto.

Relembro que, nesta zona de Nambuangongo, as operações nunca demoravam mais de 2 dias. Era ir, bater e retirar rápido, diria mesmo, fugir. A partir da altura em que estávamos descobertos nunca mais nos largavam.

Da marcha, recordo a passagem por uma anhara, uma larga planície cheia de água em que, por vezes, tínhamos água até à cintura. Neste terreno descoberto, soube bem ter tido o outro pelotão na retaguarda em protecção. Depois de passarmos, protegemos da mesma maneira, os outros.

Foi precisamente, nesta passagem, que os cães mais se movimentaram. Passavam por nós, por baixo das nossas pernas (eram pastores alemães), possantes, nervosos, o que me fez pensar que tinham farejado alguém. Apesar de saber que tinha a protecção do outro pelotão, foram momentos difíceis, aquele caminhar a descoberto. Não era normal aquele tipo de terreno na nossa zona.

De morro em morro, referenciados na carta e tirando o azimute fomos direitinhos ao morro sobranceiro do quartel do inimigo. Seriam 2 horas da manhã?. Instalámo-nos e comecei a ouvir à nossa direita uma tosse rouca de indivíduo idoso, logo de seguida, lá em baixo choro de crianças. Num espaço de silêncio de cerca de 10 minutos em que todos esperavam a minha ordem para atacar, recebi o pedido de informação, passado boca a boca vindo do outro alferes, de quando é que atacávamos e por fim veio um soldado, do próprio pelotão, fazer a mesma pergunta. Foi, quando do outro lado, nos detectaram, ouvimos muitos gritos e fizeram fogo sobre nós. Já não foi preciso dar ordem, foi um carregar de munições sobre o inimigo.

Esperamos por um certo silêncio e descemos. Não encontramos ninguém. Dei ordem a metade do pessoal para destruir as cubatas e a outra metade para seguir pelo caminho que saía do outro lado do acampamento no encalço dos fugitivos. Acompanhei este grupo e vimos sangue e alguns restos de roupa, mas não encontramos uma única pessoa do inimigo.

Tudo feito com rapidez, não mais de 10 minutos, ordem para regressar. Dos despojos trazidos, recordo uma esteira e duas quindas (cestos cónicos), das quais uma delas ainda está comigo.

No regresso, até à picada onde iríamos encontrar viaturas que nos trariam para Nambuangongo, tivemos alturas em que corremos mesmo. Foi quando encontramos uma queimada pela frente que nos iria cercar. Muitos dos momentos difíceis que passamos nas matas resultavam das queimadas que, por vezes, se tornavam ameaçadoras. Recordo que um dos militares me disse: "meu alferes temos de fazer um contra fogo", coisa que eu nunca tinha feito. E foi um deles, que estudou o melhor sítio e iniciou uma queimada que, provavelmente nos terá salvo. Quem terá sido esse militar? Quem ler esta história que, faça o favor de indagar.

Nunca nenhum dos meus militares fez a mínima referência do género: "se tivéssemos atacado mais cedo, se o meu alferes não tem demorado tanto tempo a tomar a decisão de atacar, tínhamos morto uma data de terroristas". Era a "glória" dos combatentes era "matar", fazer prisioneiros e apanhar armas. Desta vez, não aconteceu. Mas, senti, no regresso e já em pleno Nambuangongo, da parte do outro alferes que poderia ter havido mais sucesso, se...

Estou a contar isto pela primeira vez. Senti, estes anos todos e muito especialmente quando ouvi falar do My Lay e mais tarde de Wiriamu, que o mesmo poderia ter acontecido comigo e que a dor, o remorso, ter-me-ia acompanhado até hoje, ou quem sabe, ter-me-ia destruído mais cedo.

Esta é uma mensagem que aqui deixo. É mais dirigida aos militares que comigo estiveram do que propriamente para a história. Gostaria que assim fosse compreendida

Um comentário:

A. João Soares disse...

Caro Tigre,
Uma bela descrição de uma das certamente muitas operações em que tomou parte. É muito interessante o lado humano que descreve. Na guerra matar é um objectivo vulgar. Dizia-se que é preferível fazer o inimigo morrer pela sua pátria do que nós morrermos pela nossa. Mas morrem muitos inocentes, pelo que procurar evitar baixas entre indefesos é uma virtude humanitária. Se bem que naquele caso, foram eles que abriram fogo, talvez em defesa, ou como alerta, e fugiram. Dada a existência de lavras, tratava-se em grande parte de pessoas pacíficas, embora, logicamente, apoiantes dos seus amigos turras!
Hoje diz-se que eram patriotas em luta pela sua independência. O mundo dá muitas voltas!
O alferes Laia não será um oficial da GNR agora na reforma?

Um abraço
A. João Soares