quinta-feira, 19 de maio de 2022

O descobrir (desconfiar) de que seria uma guerra diferente


A Fazenda do Onzo,

Na janela do meu quarto na Fazenda do Onzo

situada a cerca de 9km a sul de Nambuangongo, ficava junto do entroncamento que vindo de Luanda se bifurcava também para o Muxuluando. Ali perto corria o Rio Onzo, bastante salientado anteriormente durante a "Conquista de Nambuangongo" pois a ponte tinha sido destruída pelo inimigo e reconstruída rapidamente pela engenharia e, segundo consta foi aqui que foi reconhecido o valor do eng. Jorge Jardim Gonçalves, alferes de engenharia, que segundo o tenente coronel Maçanita, comandante do Batalhão de Caçadores 96, foi aquele que com os militares do seu pelotão, "desbravou caminho, afastando as árvores abatidas colocadas na picada pelo iniumigo, reconstruindo pontes e fabricando jangadas". Diz Maçanita que" se não fosse o alferes Gonçalves, não sei se teria chegado a Nambuamgongo". Jardim Gonçalves ganhou aqui a cruz de guerra de 3ª. classe.

Nesta fazenda esteve aquartelada a companhia de engenharia à qual pertencia o pelotão atrás referido que ao terminar a comissão, abandonou aquela posição por alturas de Janeiro/Fevereiro de 1963. Ficou a fazenda do Onzo sem proteção militar. A solução encontrada foi enviar um pelotão da minha companhia, a 394, que ali estaria durante uma semana, sendo rendido por outro pelotão. Na primeira semana calhou ao alf. Bessa Múrias, e na segunda semana ao meu pelotão. 

Esta possibilidade de ir "passar uns tempos" ao Onzo, era atrativa e porquê? porque era um local à volta de Nambuangongo que não era atacado pelo inimigo e porque enquanto ali estivessemos, não iríamos para operações. Dedicava-se esta fazenda dominantemente ao fabrico de óleo de dendém, ou óleo de palma. Era um imenso palmar onde trabalhavam dezenas de bailundos e dois ou três brancos.Estes bailundos eram contratados na população do centro e do sul de Angola. Referi que ali se fabricava este óleo, mas nunca tive a possibilidade de entrar na zona de fabrico. Vi, sim imensos bidões carregados de cachos com frutos alaranjados.

Mal chegados à parte sul do edificio da fazenda, que ficou à nossa conta, procuramos organizar a defesa. Éramos cerca de 30 com 3 furriéis, dividimos em 3 grupos e um estaria sempre de guarda dividindo-se por 2 postos de vigia, nos extremos do edificio e um, dentro do próprio edifício. Não sem antes ter tentado entrar em contacto, com os elementos da fazenda, que deduzi serem três, para saber como estava organizada a defesa e conciliar as duas forças.Durante a semana que ali passei, nunca consegui falar com o encarregado, pois o único elemento com quem falava remetia-me para o encarregado que estava ausente e ele não tinha indicações para me dar. Mas andava sempre com uma UZI a tiracolo. Também tentei falar com alguns bailundos, especialmente mulheres que ficavam a tratar da alimentação, mas fugiam de conversar comigo.
 
Via também de manhã muito cedo, partirem todos para o seu trabalho e desaparecerem nas matas. Isto causou-me uma certa impressão. Então nós, quando em Nambuangongo, ali a 9km, somos atacados, quer quando saímos, quer até dentro do aquartelamento, e esta "rapaziada", mete-se pela mata e não há tiros? 

Pedi aos meus militares, para terem um certo cuidado com os bailundos, pois naquela altura já tínhamos tido contacto, mais de que uma vez com o inimigo, e as ordens que tínhamos era defender e atirar a matar. Claro, que me questionaram como é que iriam distinguir um bailundo de um dembo? Não era fácil. Orientei-os para se encontrassem algum na mira, demorassem mais tempo a atitude de defesa para se certificarem da atitude do outro.

Durante aquela semana, passou-me pela cabeça, esta ideia que ainda hoje perdura, porque é que aquela fazenda não era atacada? Porque é que três brancos saiem para a mata com a sua UZI a orientarem o trabalho dos negros, e regressam incólumes. E porque é que nós, quase sempre que saíamos de Nambuangongo éramos atacados? Encontrei no chão um livro de faturas velho pertencente à Sociedade Agrícola do Onzo. 

Fiquei a saber quem eram os donos. Guardo, ainda hoje, uma fatura desse livro. Fiquei à espera, até hoje, de saber que papel tinham tido as grandes empresas de Angola nesta guerra. Nunca soube.

Situações que me levaram a estas reflexões, encontrei várias. Relato mais uma:

A camioneta no Caxito. No mês de Março de 1963, regressava a Nambuangongo, depois de ter ido a Luanda levar, com o meu grupo, um conjunto de militares que entravam de licença. Nambuangongo, tinha dentro do arame farpado outras unidades que não só a nossa, como um destacamento de manutenção de viaturas e um destacamento de intendência. Parei no Caxito, a cerca de 70 km a norte de Luanda. Até esta povoação ainda se aventuravam os "brancos" no seu passeio dominical. Ou seja, até ali, não havia, naquele momento, guerra. Mesmo assim, naquele trajeto, encontrávamos situações duvidosas que nos levavam a ter precauções. Não íamos em passeio. Aqui no Caxito, entrei em contacto com o capitão que comandava a unidade ali sediada, para dar informação da minha passagem e a informação para Nambuangongo, para a minha unidade. Como era hábito, e era hora do almoço, apesar de levarmos a nossa ração de combate, ia-se ao rancho pedir uma "sopinha" e o mais que houvesse. E havia. Na mesma altura que falava com o capitão, este apresentou-me um motorista de camioneta que iria seguir para Quicabo, mais à frente 40km, e que estava à espera da minha coluna para seguir sob a nossa proteção. "Sim senhor, é só o momento de uma refeição rápida e partimos já".
Nem um quarto de hora demorámos. Procurou-se o motorista. Que é dele? E como não aparecia. Partimos sem a camioneta.

Logo à saída do Caxito aparecia um entroncamento, para a direita ia-se para Carmona, para a esquerda para o Ambriz e no meio uma pequena entrada para uma picada que nos levava a Nambuangongo. Passava-se Sassa, depois as Mabubas, Ana Passo e passados cerca de 40km chegáva-se a Quicabo. Aqui estava sediado o comando de um Batalhão do qual já não me recordo o número, mas lembro-me de ser bem recebido quando por aqui passava. Desta vez pelo capitão Pires Veloso, mais tarde general comandante da Região Militar do Norte aquando do 25 de Abril. Mas a minha admiração foi a de encontrar a camioneta que me tinha pedido proteção, ali já a descarregar. O motorista disse-me depois que tinha pressa e resolveu fazer o trajeto sozinho.

Mais uma vez me vieram pensamentos de que a primeira vez que vindos de Luanda, ali passámos em Quicabo, estava-se e desenrolar uma guerra, que já aqui referi, com vários batalhões, artilharia, força aérea, vários mortos e feridos ali ao nosso lado a aguardar evecuação. Foi preciso a "guerra parar" para o nosso batalhão passar a caminho de Nambuangongo, e a este motorista não acontece nada? Porque seria? Fiquei a ver, até hoje, se encontrava relatos semelhantes, ou explicações para este tipo de aventuras, mas nunca vi.