Esta segunda história, relembra o que poderia ter sido um My Lay do Vietnam (1968) em que morreram centenas de velhos, mulheres e crianças, mortas pelas tropas americanas, ou Wiriamu de Moçambique (1972) em que militares portugueses, mataram mais de uma centena de mulheres e crianças.
Antes em 1963 poderia ter acontecido, em Nambuangongo, mas não aconteceu (e agora é a ocasião para o dizer) porque eu não quis.
Ao contrário da primeira história, em que a deslocação se fez em viaturas, esta efectuou-se a pé, carregados, por carreiros, no meio das matas, subindo e descendo.
Recordo um dia de Julho de 1963, ainda não eram 4 horas da madrugada. Estávamos todos bem colocados para o ataque a um acampamento de terroristas (emprego os termos que então utilizávamos). Tínhamos atrás de nós e como protecção mais um pelotão do 437 comandado pelo alferes Laia. Esta era a hora limite para termos sucesso numa emboscada a um quartel. Nesta zona, o sucesso era difícil, pois que éramos detectados antes de chegarmos ao objectivo. Por outro lado, entre as 4 e 5 da manhã, levantavam-se os que viviam nos acampamentos, ou para seguirem as suas marchas, ou para irem trabalhar nas lavras.
Dois dias antes, o comandante tinha-me levado num dornier (também conhecido por DO26, avião de reconhecimento de grande maneabilidade) a sobrevoar o local e mostrando-me o que ele dizia ser um acampamento de passagem para a central do Quinguengo (voltarei mais tarde a falar nesta central)(ver no mapa com a outra designação pela qual também conhecida "Central do 28 de Maio"). Estariam, ali, portanto, militares. Propriamente sobrevoar o local, não acontecia, porque o passar de um avião por cima de um objectivo, dava origem a que a segurança desse objectivo se reforçasse nos dias seguintes ou até acontecia que o pessoal abandonasse o local, pois sentiam-se descobertos.
Vi que havia terreno cultivado à volta (lavras) e desconfiei logo de que não deveria ser quartel militar.
Preparámos a saída. Uma carta desenhada do local, uma bússola e binóculos. Uma ração de combate, água, armas e munições. Na altura a espingarda era a FN. Dois carregadores nas bolsas e mais dois nos bolsos. Duas granadas ofensivas por militar e eu levava, simbolicamente, uma defensiva, mais a bazuka, o morteiro 60 sem o prato e respectivas munições.
Saí com o meu pelotão e como, na altura, a companhia do Batalhão 437 do saudoso Capitão Casquilho (que eu já conhecia de Santa Margarida) ainda estava em fase de aprendizagem connosco, antes de seguirem para Zala, saiu também comigo um pelotão da mesma. Nesse tempo estava também em Nambuangongo uma secção de cães dos paraquedistas, comandada por um furriel e com 6 soldados, cada um com o seu cão. Comigo iriam sair 3 soldados com 3 cães pisteiros.
Recordo as orientações acordadas com o furriel dos cães - só iriam ser solicitados se considerasse necessário e marchariam atrás do nosso pelotão. O outro pelotão procuraria marchar afastado de nós, pelo menos 100 metros e protegia-nos quando seguíssemos a descoberto.
Relembro que, nesta zona de Nambuangongo, as operações nunca demoravam mais de 2 dias. Era ir, bater e retirar rápido, diria mesmo, fugir. A partir da altura em que estávamos descobertos nunca mais nos largavam.
Da marcha, recordo a passagem por uma anhara, uma larga planície cheia de água em que, por vezes, tínhamos água até à cintura. Neste terreno descoberto, soube bem ter tido o outro pelotão na retaguarda em protecção. Depois de passarmos, protegemos da mesma maneira, os outros.
Foi precisamente, nesta passagem, que os cães mais se movimentaram. Passavam por nós, por baixo das nossas pernas (eram pastores alemães), possantes, nervosos, o que me fez pensar que tinham farejado alguém. Apesar de saber que tinha a protecção do outro pelotão, foram momentos difíceis, aquele caminhar a descoberto. Não era normal aquele tipo de terreno na nossa zona.
De morro em morro, referenciados na carta e tirando o azimute fomos direitinhos ao morro sobranceiro do quartel do inimigo. Seriam 2 horas da manhã?. Instalámo-nos e comecei a ouvir à nossa direita uma tosse rouca de indivíduo idoso, logo de seguida, lá em baixo choro de crianças. Num espaço de silêncio de cerca de 10 minutos em que todos esperavam a minha ordem para atacar, recebi o pedido de informação, passado boca a boca vindo do outro alferes, de quando é que atacávamos e por fim veio um soldado, do próprio pelotão, fazer a mesma pergunta. Foi, quando do outro lado, nos detectaram, ouvimos muitos gritos e fizeram fogo sobre nós. Já não foi preciso dar ordem, foi um carregar de munições sobre o inimigo.
Esperamos por um certo silêncio e descemos. Não encontramos ninguém. Dei ordem a metade do pessoal para destruir as cubatas e a outra metade para seguir pelo caminho que saía do outro lado do acampamento no encalço dos fugitivos. Acompanhei este grupo e vimos sangue e alguns restos de roupa, mas não encontramos uma única pessoa do inimigo.
Tudo feito com rapidez, não mais de 10 minutos, ordem para regressar. Dos despojos trazidos, recordo uma esteira e duas quindas (cestos cónicos), das quais uma delas ainda está comigo.
No regresso, até à picada onde iríamos encontrar viaturas que nos trariam para Nambuangongo, tivemos alturas em que corremos mesmo. Foi quando encontramos uma queimada pela frente que nos iria cercar. Muitos dos momentos difíceis que passamos nas matas resultavam das queimadas que, por vezes, se tornavam ameaçadoras. Recordo que um dos militares me disse: "meu alferes temos de fazer um contra fogo", coisa que eu nunca tinha feito. E foi um deles, que estudou o melhor sítio e iniciou uma queimada que, provavelmente nos terá salvo. Quem terá sido esse militar? Quem ler esta história que, faça o favor de indagar.
Nunca nenhum dos meus militares fez a mínima referência do género: "se tivéssemos atacado mais cedo, se o meu alferes não tem demorado tanto tempo a tomar a decisão de atacar, tínhamos morto uma data de terroristas". Era a "glória" dos combatentes era "matar", fazer prisioneiros e apanhar armas. Desta vez, não aconteceu. Mas, senti, no regresso e já em pleno Nambuangongo, da parte do outro alferes que poderia ter havido mais sucesso, se...
Estou a contar isto pela primeira vez. Senti, estes anos todos e muito especialmente quando ouvi falar do My Lay e mais tarde de Wiriamu, que o mesmo poderia ter acontecido comigo e que a dor, o remorso, ter-me-ia acompanhado até hoje, ou quem sabe, ter-me-ia destruído mais cedo.
Esta é uma mensagem que aqui deixo. É mais dirigida aos militares que comigo estiveram do que propriamente para a história. Gostaria que assim fosse compreendida
sexta-feira, 25 de abril de 2008
sábado, 19 de abril de 2008
A camioneta vermelha - Uma das histórias sobre a mesma
Hoje, dia 19 de Abril, resolvi iniciar a escrita destas memórias. No decorrer do tempo que vou dedicar a esta tarefa, procurarei aqui escrever sobre uma série de problemas e razões ligadas à nossa presença na guerra colonial. Lembrarei igualmente todos aqueles que comigo estiveram presentes directa ou indirectamente e cuja recordação me ajuda, neste momento, a colocar aqui os factos que senti e sentimos, apesar de passados cerca de 45 anos.
Para já, e para início, recordarei a minha história da camioneta vermelha (se pesquisarem na internet, colocando entre aspas – camioneta vermelha – irão encontrar outras histórias, entre as mesmas, um poema do Fernando Assis Pacheco).
A camioneta vermelha, marcava um espaço de paragem entre Nambuangongo-Zala. Muitas vezes este local era referido, nas informações militares publicadas nos nossos jornais “Na zona da camioneta vermelha, a coluna dos nossos militares sofreu…”.
Era uma camioneta novinha a que já lhe faltava o motor. Dizia-se, na altura, que tinham sido os paraquedistas. Teriam sido? Quem foi e que se estiver a ler a história que confirme ou relate a verdade.
Estava num caminho de acesso a um espaço onde tinham existido edifícios duma fazenda e encostada a um muro.
Em histórias sequentes recordarei as belezas e os momentos difíceis vividos nos cerca de 30 quilómetros da picada Nambuangongo – Zala.
Talvez Junho de 1963. Pertencíamos à 394. Estávamos em Nambuangongo, no morro junto à Igreja. A companhia que estava em Zala, e que não pertencia ao nosso Batalhão (a 368?), encontrava-se nos limites do esgotamento físico e material (dinheiro). Já não vinha reabastecer-se a Nambuangongo porque talvez não tivesse ou viaturas ou pessoal suficiente. Os aviões militares de reabastecimento, já não pousavam em Zala, pois a pista não oferecia condições de segurança. Na altura, no fim da pista (a antiga), de lado estava um destruído. Os aero taxis eram os únicos que se aventuravam mas custavam caro.
Recebi a missão, de ir levar reabastecimento a meio do caminho. Esse meio de caminho, ficava num bico de pato (não era o de Zala) onde as viaturas podiam dar a volta, mas, recebi o pedido do alferes de Zala, para ir um pouco mais à frente, até à camioneta vermelha que ficava antes da Fazenda Madureira.
A saída para Zala, obrigava a cuidados redobrados porque já sabíamos que iríamos, na ida ou na volta, sofrer ataques do inimigo. Havia que antes de partir preparar o grupo (cerca de 30 homens) para uma boa disciplina radio e os pequenos grupos bem estruturados para reagir com uma certa independência. Levava à frente o furriel Rebocho e atrás no ultimo jipe o furriel Calado (Alpiarça). Conseguimos, para esta saída, 3 telefones que no decorrer da deslocação verificamos que funcionavam mal ou mesmo não funcionavam.
A fotografia que acompanha esta história (das poucas que possuo – o nosso comandante não permitia o uso de máquina fotográfica) mostra a colocação de uma metralhadora pesada (browning .50?) num Unimog, no dia anterior à saída, por trás do edifício da Manutenção Militar (quem ia da 394 para a CCS, do lado esquerdo já no fim da descida. Normalmente as metralhadoras que se levavam eram ligeiras. Desta vez, resolvi, juntamente com os dois jovens da fotografia (quem serão?) arranjar uma ligação ao chassis do Unimog. Resultou. Na vinda foi de grande utilidade e eficácia.
Mas, um grupo de mecânico da CCS, sabendo que íamos para aqueles lados, veio pedir para me acompanhar na deslocação. Isto de haver pessoal a oferecer-se para uma saída em direcção a Zala, não era normal e para mais mecânicos. Pediam-me ainda para levar um atrelado. Diziam que tinham autorização do nosso comandante.
“E porque é que querem ir na coluna?” (a saída com militares não habituados às situações características daquele local e ainda para mais não habituados a sair comigo, não me agradava). Responderam-me que pretendiam ir à camioneta vermelha tirar e trazer o motor.
Dissuadi-os, dizendo que a mesma já não possuía motor. Ficaram um pouco desapontados, mas acrescentaram que uma camioneta não possui só motor. Tem o diferencial, suspensões, rodas, etc. E foram.
Chegamos, à dita zona, instalamo-nos protegidos e esperamos. Os mecânicos começaram a descobrir que ainda havia muita coisa boa. Viraram a camioneta de pernas para o ar. Cabos guinchos etc. em função e lá estava a camioneta esventrada.
Foi certamente assim que muitos que nos seguiram a encontraram.
Foi um sair de peças.
Demoraram a chegar os de Zala. Mas, quando apareceram na curva do alto da descida, começou a saraivada, para eles e para nós. Da nossa parte, porque estávamos abrigados, só as viaturas é que sofreram. Um dos jipes andou sempre, para recordação, com um buraco no conta quilómetros. Do outro lado foi preciso mandarmos morteiradas para chegarem cá abaixo. Levaram o reabastecimento e ainda hoje, recordo o pedido do meu camarada, para que só saísse dali quando eles chegassem a Zala. Nós éramos o único grupo que os poderia socorrer se fossem atacados no regresso. Garanti-lhes e estive sempre em contacto até ouvir a voz do radio telegrafista a dizer: chegamos.
A camioneta vermelha, um símbolo e um local que nos marcou.
Soube posteriormente, que os ditos mecânicos, venderam as peças em Luanda. Ficou comigo, como recordação a matrícula da mesma, que ofereci a um dos meus netos e que pode agora com este relato, começar a perceber o que foi esta guerra.
Ao contar esta história, poderá acontecer que os descendentes dos donos da camioneta possam accionar a justiça e tentar localizar os rapazes de então para exigir indemnização. (O próximo relato, que aqui farei, recorda uma deslocação a Zala a acompanhar um capitão de engenharia, vindo de Luanda, que ia realizar uma peritagem sobre um pedido de indemnização de um fazendeiro de Vila Pimpa, a viver em Luanda, porque o exército português tinha destruído folhas de zinco na sua fazenda).
Deve ter prescrito. Descansem. Mas a história é que não pode prescrever.
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